aberta ao mundo

Ando pela vida como se abertos estivessem todos os caminhos do mundo. (Mário Quintana)

27.3.05

Quando o tempo congela

Para certas coisas na vida, parece que o tempo congela. A gente envelhece, mudam os prefeitos, os presidentes; muda a moeda; muda a cotação do dólar; aparecem rugas, aparecem pneuzinhos, até cabelos brancos aparecem, mas o tempo, congelado.

É assim com grandes amigos. Anos sem se verem, meses sem qualquer telefonema, dias a perder a conta sem notícias... De repente, a gente se esbarra na padaria, e aí são horas de conversa, contando as novidades, os namoros, os filhos, a família... É tanto assunto e tamanha a intimidade que você pensa que nâo vê aquela pessoa desde ontem.

Às vezes, eu mesma me assusto com a intimidade que tenho com certas pessoas. Mesmo a gente não se vendo nem se falando sempre, mesmo passando messes (anos, às vezes) sem nos encontrar; no dia que a gente se fala, parece que nada mudou, que o tempo esteve parado. Tudo bem que alguém casou, teve filho, morou no exterior, passou um tempo em outro estado, criou alguns cabelos brancos... A nossa relação, pensamento, ideologia continuam as mesmas.

Mas o tempo congela mesmo quando se trata dos grandes amores de nossas vidas. Todo mundo tem alguém que se encaixa neste perfil. Alguém que, embora faça muito tempo que não encontramos, basta bater o olhar para aquele vendaval químico desandar dentro da gente. As mãos suam, as pernas tremem, engasga, baixa a vista, o coração papocando dentro do peito...

Não adianta. Algumas pessoas passam por nossas vidas e deixam marcas profundas, raízes, cicatrizes que não somem nunca. Amores são mesmo inesquecíveis. Uma canção antiga já dizia: “De cada amor, tu herdarás só o cinismo”. Discordo. Acredito que a gente herda sempre centenas de recordações de momentos muito bons, fotos, cartas...

São tantas coisas que guardamos cá conosco, que um pouquinho da pessoa fica dentro da gente. As imagens são tantas: um sorriso, um sinal que ele tinha no pescoço, um jeitinho meigo, um apelido carinhoso, os sussurros, as comemorações de aniversários de namoro, as ligações... São estes detalhes de nós dois, estas histórias só nossas que acarretam a explosão química quando cruzados os olhares, quando a voz ressoa no telefone.

É verdade, para algumas coisas o tempo pára.

Tem uma poesia traduzida por Manuel Bandeira que mostra perfeitamente como reajo a esses encontros inesperados:

Renúncia
Patrícia Morgan

“Me mantive branca,
Me mantive estática;
No entanto uma chama
De paixão estranha
Ardeu dentro em mim.
Mas ele não soube,
Nem saberá nunca,
Tudo que senti...

Vi mundos nublados,
Me aromei de nardos,
Me tremia o peito...
E em meu porte erguido,
Me mantive estática,
Minha emoção foi pálida...
Já passou o momento,
Foi-se a tempestade.

Não saberá ele
Que senti seus lábios
Beijar minha carne;
Que ao fitar no seus
Meus olhos profundos,
Entreguei minh’alma;
Que tremi de anelos,
Juntando nas minhas
As suas mãos cálidas.

Mas passou o momento
Como tudo passa,
E entre labaredas
Desse fogo imenso
Me mantive estática,
Me mantive branca.

Tu sábio e grandioso
Senhor do Universo,
Tu, sim, é que o sabes;
Te entrego este grave
Instante que redime
Meus pecados todos;
Guarda o meu segredo,
Que ele nunca saiba
Isto que tu sabes.”