aberta ao mundo

Ando pela vida como se abertos estivessem todos os caminhos do mundo. (Mário Quintana)

13.12.05

Enfim te vejo

Enfim te vejo. Enfim pouso nos teus meus olhos curiosos, ávidos... Olhos que tentam desvendar o que está escondido nos cantos recônditos deste olhar. Sim, enfim te vejo! E busco nas conversas amenas perquirir tua alma; devassar teus pensamentos; ler nas entrelinhas o que não conseguimos dizer por cômoda educação, por conveniência, por proteção, para não arrancar novamente a casca da ferida que ainda não cicatrizou por inteiro. Tu falas sobre o vento gelado do lado de lá, de catedrais monumentais, parques fenomenais, lugares que iluminam sonhos de metade dos que moram do lado de cá. Tu devaneias sobre lugares e histórias, sobre farras e memórias e desvia o olhar. E evitando me olhar... Talvez porque percebes o campo eletromagnético ao nosso redor, como objetos ionizados por cargas elétricas opostas a soltar descargas em faíscas despertadas pelo encontro do olhar. Enfim te vejo e depois de tanto tempo tu filosofas sobre História e Arte, sobre museus e espetáculos, enquanto eu revisito cada detalhe desse rosto que eu conheço de cor, que é a mais doce das imagens mnemônicas. E nesse momento em que tu fitas o ar, a noite ou uma estrela qualquer que brilha a nos observar do céu “é que te olho detalhado, e nunca saberás quanto e como conheço cada milímetro da tua pele”, esses vincos ao redor da boca, esses olhos cheios de um encantamento infantil e esse sorriso capaz de iluminar qualquer ambiente. E me perco do que dizes, e a cabeça viaja às memórias deste rosto em meu colo, dedos entrelaçando cabelos, lábios e línguas se buscando, mãos perdidas num corpo só que envolve duas almas. E, tão dissimulada, penso nisso tudo enquanto falas qualquer coisa sobre qualquer lugar em que estivestes. E finjo tão bem que não percebes que meu desejo é apenas “chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado, através de histórias como essas”. E enquanto tentas mostrar tudo que aprendestes, percebo o quanto tu te escondes de mim e te afastas. “Tenho um medo cada vez maior do que vou sentindo em todos esses meses, e não se soluciona, mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar inteira por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que não decifro, a aceita-los com um cão faminto aceita um osso descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os pratos vazios, torno sempre a voltar, talvez penalizado do teu olho que não se debruça sobre nenhum outro assim como sobre o meu” e te espero com a convicção da beata que espera a salvação após a morte, com a vontade do faminto em frente a um prato de comida; com o querer da mãe que espera o primeiro filho. E voltarei sempre a ti, porque foste qualquer coisa de inexplicável, destas que deixam a marca gravada a ferro na alma, transcendendo o que quer que se possa imaginar de superficial, de epidérmico. Enfim te vejo e descubro que te esperei este tempo todo querendo apenas voltar pra ti; “tornarei sempre a voltar porque preciso desse osso, dos farelos que me têm alimentado ao longo desse tempo, e choro sempre quando os dias terminam porque sei que não nos procuraremos pelas noites”. Pairo pelo mundo, vago pela vida, sobrevivo apenas quando da tua ausência e esta ausência doída, lacerante, pungente só serviu para que as certezas se evidenciassem, para que as dúvidas arrefecessem, para que as mudanças antes impossíveis ocorressem, para que eu me preparasse para ser o que desejaste por tanto. E longe vão meus pensamentos e em mim pousam teus olhos, percebo teus lábios carnudos se movimentarem, dando vida a qualquer história que finjo ter interesse com um sorriso no canto da boca, “atrás de cada palavra tento desesperada encontrar um sentido, um código, uma senha qualquer que me permita esperar por um atalho onde não desvies tão súbito os olhos, onde teu dedo não roce tão passageiro meu braço, onde te detenhas mais demorado sobre isso que sou e penses quem sabe que se aceito tuas tramas” é porque é chegada a hora de voltar àquele ponto esquecido, àquele ponto que supúnhamos soterrado, àquele ponto em que paramos para nos despir um do outro. Enfim te vejo e espero, rezando, chorando, pedindo, implorando silenciosamente, sem abrir a boca, sem alterar a respiração, sem lágrimas, sem cenas, que fiques.
* Citações do Conto "À beira do mar aberto, Os dragões não conhecem o paraíso - Caio Fernando Abreu"