aberta ao mundo

Ando pela vida como se abertos estivessem todos os caminhos do mundo. (Mário Quintana)

15.11.05

Irremediável

"Eu dava um cavalo branco para ele, uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar, dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse, fazia com a areia, com o sal, com as folhas dos coqueiros, com as cascas dos cocos, até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe. Mas ele não queria, acho que ele não queria, e eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique a gente constrói qualquer coisa, até um castelo" (O mar mais longe que eu vejo - Inventário do Ir-remediável. Caio Fernando Abreu)




Acordou com uma vontade estranha, uma saudade estranha, um incômodo indescritível. Era saudade, sim. A constatação disso tanto tempo depois gerou um sorriso nos lábios dela. Deitada ainda, procurou por alguém ao lado na cama, procurou um ombro pra se aconchegar, procurou alguém pra dizer bom dia com uma vozinha infantil, como só quem está muito apaixonado consegue fazer. Mas não havia ninguém lá. Sentiu falta de ligar todos os dias nos mesmos horários para a mesma pessoa, aquela com quem podia ficar conversando leviandades, descrevendo dias modorrentos como se uma história fascinante fosse; e ainda de ligações extraordinárias no meio da tarde da quarta-feira só pra dizer “eu te amo”. É, ela tava estranha aquele dia. Sentiu falta da programação do final de semana juntos, das viagens nos feriados prolongados para aquela casa de praia, da perspectiva de uma vida inteira juntos. Lembrou-se do nome dos filhos que planejara ter. Lembrou da turma de casais e daquele barzinho de todas as sextas. Lembrou dos micos que pagaram juntos não sei quantas vezes por conta da bebida e da parada obrigatória naquela lanchonete no meio da madrugada, aos domingos ou quando batesse nela uma vontade irresistível de comer tranqueira. Lembrou da confiança incondicional, da cumplicidade, da intimidade extrema, do companheirismo, da mão pesando na perna quando no carro, do corpo pesando sobre o dela, do beijo ofegante, do abraço apertado e das lágrimas (tantas...) por ciúme, por amor demais, por saudade, por brigas inúteis... Lembrou de como se sentia ao lado dele, da sensação de que tudo ia ficar bem, por maior e pior que fosse o problema. Lembrou das aulas de química, das horas em que ficavam sentados, cada um estudando suas coisas, mas sempre por perto, ao alcance dos lábios. Riu muito da mania de doce, do festival de cosquinhas, das brigas estúpidas em Olinda e das inúmeras reconciliações. Lembrou de como ele achava engraçado as lágrimas que saltavam dos olhos dela por qualquer bobagem, um filme, uma homenagem, uma frase, um poema... Lembrou do quanto foi difícil aquela viagem que ele fez. Lembrou-se dos inúmeros aniversários, das surpresas e de uma mágoa. Porque toda história de amor tem suas mágoas. Porque toda história de amor é pra ser lembrada.

O passado continua essencialmente o mesmo e, já que não pode mais ser vivido, pede para ser lembrado...